sábado, 21 de abril de 2012


O sentido da vida e a história pessoal
Dulce CritelliTexto publicado na coluna “Outras Idéias” , Folha Equilíbrio,
“Folha de São Paulo”, de 21 de abril de 2005

Há poucos dias a TV a cabo exibiu mais uma vez o filme “Tomates Verdes Fritos” (91), de Jon Avnet. Eu já havia assistido a ele uma dúzia de vezes, mas não resisti e o vi de novo. Fico encantada com as histórias que a velha senhora conta, talvez exatamente como a dona-de-casa do filme fica encantada. Fascina-me a maneira como a senhora recria sua vida na forma de uma história repleta de significados.
A maioria de nós é capaz de se lembrar de uma série de acontecimentos de sua vida. Mas todos esses episódios são tratados como acontecimentos separados uns dos outros. Qual seria o fio que ligaria todos eles e os tornaria parte de uma única história? Essa a grande dificuldade da maioria de nós: reconhecer qual a história que se formou em nossa vida enquanto passávamos de um acontecimento a outro.
A velha senhora do filme sabe reconhecer a sua história. Ela sabe perfeitamente qual foi a vida que viveu. Sabe a personagem que foi, quem foram seus parceiros, cúmplices e seus adversários e quais foram as graças e as adversidades que lhe vieram de encontro. Sabe, principalmente, que sua história poderia muito bem ter sido outra, não fosse o amor pela amiga Ruth. Esse amor que lhe deu chão, origem e destino, que foi o principal fio que juntou os eventos de sua vida, dando a eles um sentido. Juntou-os como um fio de ouro junta pérolas e forma com elas um colar.
Além disso, a velha senhora tinha a posse de um outro dom raro, o de fazer sua ouvinte ver a personagem que ela própria fora, exatamente como gostaria de ser vista por ela.
Enquanto dizia narrar a história de uma terceira pessoa (não revelou que essa pessoa era ela própria), tomou um certo distanciamento de si mesma e teve, assim, liberdade para observar-se no cenário de sua existência.
A cada dia lhe foi possível desenhar a personagem que ela julgava ter sido e, acredito, foi descobrindo “quem” ela mesma era e qual o “sentido” da sua vida.
“Quem sou eu?” e “qual o sentido da vida?” são as duas grandes questões que nos fazemos incessantemente. As questões que temos urgência de responder, pois carregam nelas a explicação desse misterioso fato de existirmos. O equívoco comum, é o de imaginarmos que a resposta a essas perguntas vitais estejam fora de nossa própria vida, da nossa história.
O nosso nascimento é o começo dessa história; por meio dele somos lançados num mundo com um corpo, um sexo, uma família, um nome, uma condição social, um país, uma época. O sentido ou o rumo da nossa vida já veio, de alguma forma, embrulhado nele. Não ganhamos o fim da história, que só virá com a morte, mas ganhamos o início e uma certa bagagem para seguir caminho.
É disso tudo que fala a velha senhora quando narra sua história. O fato de que nossa vida forma uma história e de que podemos agir sobre ela é o que a dona-de-casa gorda e sem motivação compreende. Ao ouvir a história da velha senhora, vai revendo a sua própria e vai descobrindo que não precisava ficar presa ao rumo dos acontecimentos, mas podia intervir nele, colaborar para sua destinação.
Não podemos agir satisfatoriamente sobre aquilo que não compreendemos. É na observação do caminho que temos feito, na observação de como temos respondido aos acontecimentos que vêm ao nosso encontro, que está a chave da construção dessa narrativa. Não podemos modificar os eventos da vida, mas podemos alterar os modos de vivê-los.
O que a velha senhora sabia é que o sentido da vida está na construção da história pessoal. E que, quando somos capazes de narrá-la, estamos a ponto de ter a plena posse de nós mesmos.

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